domingo, 29 de maio de 2011

O Quelso e eu - um artigo de Ricardo Mota




Ricardo Mota



O Quelso e eu

Confesso que não carrego comigo a convicção de que “agora vai”, uma marca do Eliezer Setton a cada novo projeto ou trabalho. É de um otimismo quase que infanto-juvenil, uma vitalidade que só os eternamente meninos de alma haverão de carregar.
E ele nos chega, periodicamente, com seu delicioso e talentoso trabalho de forrozeiro-mor das Alagoas. O Galego, como eu o chamo, aprendeu a fazer a Música Popular Nordestina com todos os jeitos e trejeitos próprios, cheia de malícia, humor e provocação. Gosto de ouvi-lo, seja pela sua voz mesma, seja pelo canto rasgado de Elba Ramalho, ou de outros grandes da MPB – como ele -, a exemplo de Gilberto Gil, que já incorporou o nosso Setton ao seu repertório.
“Agora vai!”, repete, ao som de “ O quelso”, seu mais recente CD. Uma delícia, do começo ao fim. E o começo não é pouco: um soneto estranho, antigo, quase surreal, de autor desconhecido que se tornou ilustre com a nova parceria.
E eu tenho um certo orgulho do Galego. Não sou o pai da criança, mas ajudei a embalá-la. Ele tinha passado uns anos lá pras bandas do Rio de Janeiro, aí pelas décadas de 1980 e 1990, e quando voltou ao seu chão, disse que havia se envolvido com escolas de samba e gente da noite, construindo a sua carreira de artista.
Chegou a gravar, no Rio, uma fita em estúdio – o que não era fácil na época -, com um jeitão Cauby de ser. Bem entendido: vozeirão esticando as notas para delírio do público. Não era a praia em que ele iria se banhar com a mesma ginga do centroavante “gomeiro” que eu conheci (hoje seria marrento), e que viria a exibir nos palcos da vida. O forró de qualidade já o cutucava, e ele nem aí.
Um dia, há quase 20 anos, ele me chamou para ver uma apresentação “simples”, que iria fazer na antiga Salgema, numa sexta-feira, na hora do almoço dos trabalhadores. Fui e não me arrependi. O Galego deu um show, mostrando xotes, baiões e assemelhados, que trazia no seu “matulão”, de volta para o seu aconchego. Uma maravilha!
“É isso!” Disse-lhe com entusiasmo. Pela primeira vez – e talvez a única – fiz mais zoada do que ele ao falar sobre o seu trabalho musical. Daí em diante, Setton assumiu uma definitiva nordestinidade, que hoje o Brasil todo conhece. Seus discos, feitos com muito esmero, trazem sempre um glossário de “nordestinês” e o indefectível e luxuoso auxílio de Tião Marcolino (êita caba bom da peste!). Ignorado ou esnobado por tantos nestas bandas de cá – inclusive dos meios de comunicação – , ele vai rasgando estrada pelos sertões do Brasil.
Ainda recentemente, no programa do Rolando Boldrin – “Senhor Brasil”, TV Cultura, domingo, às 10h -, botou a plateia no bolso e deixou o apresentador embevecido. Terminou na Virada Paulista, o maior evento artístico da capital de São Paulo.
Mas não lhe nego, também, algumas queixas. Como diria seu Luiz Mota, o Setton “foi vacinado com agulha de vitrola”: é uma máquina de falar, com direito ao moto-contínuo. E quem há de desligá-la?
Certa noite, por volta das 21h, o Galego me ligou. Falou sem parar sobre músicas, projetos, tudo com sofreguidão, entusiasmo e sem pausa – para não dar chance de manifestação sonora ao interlocutor. Perto da meia-noite, pedi para desligar – teria de me acordar às 5h, no dia seguinte.
- A que horas você chega em casa pra almoçar?
- Ao meio-dia e meia, mais ou menos.
Foi caçapa. Ao voltar do trabalho, abro a porta do apartamento e o telefone toca.
- Alô?
- Como eu ia dizendo …
- Pô, Galego!!
Em tempo: ”O quelso” pode ser encontrado no Museu Théo Brandão. No encarte do CD tem a definição da palavra “settônica” que o bat
iza.


(Artigo publicado no blog "Tudo nas Hora.com.br")

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